Coringa: Delírio a Dois faz um estudo ousado e polêmico de seu personagem | Crítica
- André Keusseyan
- 18 de out. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 25 de jan.
Entre altos e baixos, sequência do aclamado filme de 2019 reflete sobre glamorização das produções True Crime

No ano de 2019, Coringa chacoalhou a fórmula dos filmes baseados em quadrinhos com uma versão inédita do Palhaço Príncipe do Crime. O longa solo do arqui-inimigo do Batman tinha uma pegada mais séria, realista e causou diversas reações no público. Alguns amaram, outros odiaram, alguns temeram que a produção gerasse uma onda de violência no mundo real e ouve até quem enxergou o supervilão como uma espécie de justiceiro. Aclamado por público e crítica, o filme atingiu a marca de Um bilhão de dólares arrecadados nas bilheterias mundiais, e foi indicado em diversas categorias no Oscar 2020, entre elas a de Melhor Filme, rendendo ao astro Joaquin Phoenix o prêmio de Melhor Ator.
Mesmo tendo sido criado como uma história única, o sucesso atingido pela produção tornou uma continuação da história de Arthur Fleck quase que obrigatória. Com carta branca para fazer o que quisesse o diretor e corroteirista da produção, Todd Phillips, optou por não repetir a fórmula e fez de Coringa: Delírio a Dois uma continuação ousada e polêmica ao levar o filme original a julgamento, explorando novas faces de seu protagonista e analisando a repercussão de seus atos.
A trama de Delírio a Dois, acompanha o cotidiano de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) dentro do sistema opressivo do Asilo Arkham enquanto espera o dia em que irá responder em tribunal pelos crimes que cometeu. Chamado de “O Julgamento do Século”, a data é aguardada com grande expectativa por toda Gothan City, principalmente pela mídia que busca, de qualquer maneira, explorar a imagem do Palhaço do Crime.
Quando a sequência de Coringa foi anunciada, muitos fãs imaginavam que a nova produção fosse focar na consolidação do personagem como um dos maiores chefões do crime de Gothan. No entanto, o roteiro de Todd Phillips e Scott Silver subverte essa expectativa e opta por regredir o personagem à figura de Arthur Fleck. Apesar de polêmica, a decisão permite que mergulhemos mais fundo na mente deste complexo personagem, colocando em xeque a existência do mesmo.
A final existe realmente um Coringa, ou seria a figura do palhaço apenas fruto da mente de Arthur, uma personalidade extravagante criada por um homem sofrido a fim de fugir dos males que lhe afligem desde a infância? Phillips faz então, uma evolução natural do estudo do personagem que criou, mesmo que para isso tenha que sacrificar uma das principais virtudes do longa original que era deixar que o público tirasse suas próprias conclusões para as perguntas e situações apresentadas em tela.

Ao trazer o primeiro filme a julgamento, Delírio a Dois acaba tendo que responder muitas dessas perguntas. Uma decisão ousada que pode deixar um gosto amargo na audiência, principalmente em que passou os últimos cinco anos criando teorias e refletindo se tudo aquilo aconteceu exatamente da forma que foi mostrado, mas ao mesmo tempo dá liberdade para Joaquin Phoenix explorar novas facetas de Arthur.
Após se consagrar com uma performance premiada, Phoenix teve a chance de brilhar novamente no papel. O ator domina a produção, trazendo à tona um Arthur ainda mais versátil, transitando entre fragilidade, raiva, felicidade e até amor. O palhaço agora busca por sua própria identidade, mesmo que o mundo ao redor tente defini-lo da forma que lhes for mais conveniente. Uma tarefa executada com perfeição por Phoenix e que, quem sabe, possa lhe render novos prêmios.
Se em Coringa vimos como a “Sociedade” levou Arthur a cometer seus crimes, Delírio a Dois se propõe a mostrar como essa mesma “Sociedade” lida com os monstros que ajudou a criar. Seja para tratá-lo como um criminoso sem compaixão ou para transformá-lo em uma espécie de mártir, vemos a imagem do Coringa sendo explorada ao máximo através de julgamentos midiáticos, entrevistas sensacionalistas ou até mesmo em dramatizações para a TV.
Nesse ponto, o filme lança uma reflexão sobre a forma como produções True Crime são exploradas e consumidas. Filmes e séries que retratam crimes e assassinos reais tem se tornado cada vez mais populares. A série Dahmer: Um Canibal Americano, lançada pela Netflix, por exemplo, se tornou um dos maiores sucessos da plataforma de streaming, porém a produção causou a revolta de vários parentes das vítimas do serial killer Jeffrey Dahmer que alegaram que a ficcionalização desse tipo de crime é algo cruel e retraumatizante. Além disso, criticaram o fato de muitos fãs da série estarem comprando fantasias inspiradas no visual do criminoso para se vestirem no Halloween.
Se pararmos para analisar, essa situação não é muito diferente do que vemos em Delírio a Dois – e também no mundo real – com a imagem do Coringa sendo cultuada por diversos fãs do Palhaço do Crime (alguns inclusive se vestindo igual a ele) e as várias menções a produção de um filme para TV retratando os cinco assassinatos cometidos por Arthur Fleck. Em um dos momentos mais emocionantes do filme temos o depoimento de Sofie (Zazie Beetz), vizinha pela qual Arthur tinha obsessão, onde a personagem expõe como sua vida foi engolida pelo circo midiático que se tornou o “Caso Coringa”, com sua imagem sendo explorada pela imprensa sem seu consentimento, além de sofrer com o assédio e ameaças dos seguidores do palhaço.

Quanto mais a fama de Arthur cresce, mais fanáticos vão aderindo a sua “causa”. Esse fascínio pelo ideal que a figura do Coringa se tornou está presente em diferentes níveis durante todo o filme, mas o maior representante deste séquito de seguidores está no grande acréscimo da produção: A Arlequina, interpretada por Lady Gaga.
Dar vida a uma personagem tão popular quanto a Arlequina já seria uma tarefa difícil, mas a responsabilidade aumentou depois que Margot Robbie conquistou o mundo ao interpretar a personagem nos dois filmes do Esquadrão Suicida (2016 e 2021) e em Aves de Rapina (2020). Não que a Arlequina de Delírio a Dois possa ser comparada a versão de Robbie (nem deve, afinal estamos falando de universos diferentes com propostas diferentes), mas assumir esse papel agora não deixa de ser uma missão ingrata.
Felizmente, a tarefa é cumprida à risca por Lady Gaga. A estrela pop não se intimida diante da delicada missão, e brilha ao acrescentar novas camadas para a personagem. Assim como o Coringa, Harleen Quizel surge como uma versão totalmente diferente da Arlequina dos quadrinhos. Ao invés da origem tradicional onde a jovem psicóloga se apaixona por seu paciente mais ilustre, o filme apresenta Harleen – chamada apenas por “Lee” – como uma admiradora do Palhaço do Crime que cruza com o caminho dele dentro do Asilo Arkham. A partir daí a produção constrói o romance entre os dois malucos em torno da imagem idealizada de Arthur Fleck.
O relacionamento abusivo entre Coringa e Arlequina já foi explorado diversas vezes por diversas mídias, sempre retratando a palhacinha como uma jovem alienada e manipulável. Sem medo da reação negativa dos fãs mais quadrinheiros, o roteiro de Phillips e Silver acerta ao inverter a dinâmica de poder da relação, apresentando uma Arlequina muito mais insana, manipuladora e acima de tudo, incontrolável.

Vamos falar do grande elefante na sala. Desde que foi anunciado, a grande polêmica era se o filme seria ou não um musical. Apesar de declarações contraditórias da equipe, podemos dizer que sim, ele é um musical. O gênero pode não ser o preferido do grande público, mas não dá pra negar que a música é algo que faz parte da personalidade de Arthur desde o primeiro filme. Sempre que praticava atos violentos, o personagem extravasava com dança, representando o Coringa se libertando das amarras que o prendiam. O que a continuação faz é elevar essa sensação ao máximo, nos colocando dentro da mente insana de Arthur e Lee.
A escolha por um filme musical está longe ser um problema. A grande questão é a forma como os momentos musicais são inseridos na trama. Quando bem utilizada, a parte musical ajuda a definir a dinâmica entre Coringa e Arlequina, sem abandonar o tom sombrio da produção. Como todo bom palhaço, Joaquin Phoenix está disposto a dar um show. O astro abraça o conceito e surpreende em cada sequência de canto e dança. Lady Gaga, por sua vez, abrilhanta o espetáculo com seu talento, mas claro, nunca deixando que sua personalidade nos palcos se sobreponha à personagem.
Por outro lado, o diretor Todd Phillips apresenta problemas para encaixar algumas das sequências musicais dentro da história, fazendo com que algumas delas soem desnecessárias e interrompam o ritmo da narrativa. Quando isso ocorre, a impressão que temos é de que estamos vendo apenas uma exibição dos talentos de Phoenix e Gaga, sem uma clara evolução na jornada de seus personagens. Ao final das mais de duas horas de duração, até o maior fã do gênero pode se sentir cansado.
É difícil definir Coringa: Delírio a Dois como bom ou ruim. O filme é muito pessoal e deve variar de pessoa pra pessoa. De qualquer modo, é inegável que, mesmo com altos e baixos, Todd Phillips, entregou uma conclusão satisfatória para a história que iniciou em 2019, trazendo ao mesmo tempo temas bem interessantes e que merecem serem debatidos, mas os quais o público, talvez, não esteja disposto à discutir no momento.
No final, como era de se esperar, o Coringa segue dividindo opiniões.